O diretor, roteirista e produtor Christopher Nolan é uma das personalidades do cinema mais influentes da atualidade. Com uma carreira de grandes sucessos de público e crítica desde o início dos anos 2000, o cineasta costuma seguir uma mesma linha de produção em seus projetos: grandes histórias, uma equipe técnica potente e um roteiro que é bom, mas não consegue ultrapassar a barreira do sensível. De Amnésia (2000) até Tenet (2020) – passando pelo ‘queridinho’ Interstellar (2014) – as produções encabeçadas por Nolan costumam ter dificuldade em se mostrar mais humanas. Elas lutam para chegar no sensível e ir além da dureza de uma produção industrial – ainda que essa tenha espaço para belas imagens, montagens e sons. No entanto, durante duas décadas, o resultado era o mesmo – qualidade técnica, mas nada de palpável no quesito emocional.
Até antes de assistir o mais novo trabalho do diretor, Nolan nunca havia furado essa bolha. Tudo sempre teve qualidade, uma maestria na execução dos processos, resultados belíssimos e maravilhosamente bem administrados. Mas nunca senti sensibilidade. Até então, tudo parecia uma linda embalagem de presente de Natal onde, dentro dela, não havia nada. A superficialidade das emoções humanas e das sensações mais intrínsecas não tinham sido exploradas até a chegada de Oppenheimer. Esse pode ser o filme que mudará a trajetória da carreira do cineasta.
O longa-metragem, que estreia nesta quinta-feira (20), é um passo além do diretor em sua forma de fazer cinema. Não se enganem, a produção continua sendo bem administrada e rodeada por uma equipe técnica sublime – a prova disso está na montagem, fotografia, edição de som e trilha sonora. Contudo, é finalmente possível sentir algo, ainda que de forma sutil. Mesmo que Nolan tenha muito o que explorar sobre a densidade das emoções humanas daqui para frente, ele enfim furou a bolha com Oppenheimer. O boneco de madeira se tornou um garoto de verdade e entregou o seu mais belo trabalho da carreira.
Na cinebiografia, o público embarca na vida de J. Robert Oppenheimer (Cillian Murphy), o físico teórico que ficaria conhecido como pai da bomba atômica. A história descreve desde os primeiros anos do cientista e seus contatos com figuras proeminentes do mundo da física até o início do Projeto Manhattan, seu resultado e os dilemas científico/éticos no pós Segunda Guerra. Em meio aos louros, os relacionamentos, a política e a vaidade, Oppenheimer marcou a história da humanidade como o Prometeu moderno, dando ao povo o poder de se destruir com o início da corrida nuclear.
A partir de uma história como essa, o filme poderia ser muitas coisas, inclusive só mais uma cinebiografia que cairia no esquecimento em pouco tempo. A virada de chave, no entanto, está no timing que o projeto é lançado. Ainda que fale de um acontecimento histórico de décadas atrás, a perspectiva de discutir a relação entre avanço da ciência, guerra e ética não poderia ser mais atual. Com dilemas da inteligência artificial e as atrocidades da guerra na Ucrânia acontecendo, Oppenheimer chega aos cinemas pronto para pontuar o que precisa ser discutido no momento sobre esses assuntos – e, desta vez, com camadas e profundidade.
Baseado no livro ‘Prometeu Americano’, de Kai Bird e Martin J. Sherwin, o roteiro consegue tornar central a discussão da vaidade do personagem e o dilema que a sua invenção gerou para a humanidade e para si. Esse pano de fundo, unido com uma montagem brilhante de Jennifer Lame (História de um Casamento, de 2019, e Pantera Negra: Wakanda Para Sempre, de 2022) e as performances de um elenco potente faz as três horas de duração passarem despercebidas. Oppenheimer é um dos melhores trabalhos de Nolan também como roteirista – o qual, possivelmente, estará como um dos favoritos na corrida pela estatueta no Oscar de 2024.
Outro ponto de destaque na técnica do filme é a fotografia. Como a narrativa se divide em duas tramas – a trajetória de Oppenheimer e a audiência de decisão da entrada de Lewis Strauss como secretário na Casa Branca -, o diretor de fotografia Hoyte van Hoytema (Tenet e Não! Não Olhe!, de 2022) teve a oportunidade de brincar com cores, sombras e formas da imagem em Oppenheimer. Sendo uma das frentes narrativas colorida e a outra em preto e preto, Hoyte entrega um espetáculo visual de tirar o fôlego.
E para permitir que o diretor de fotografia gerasse imagens ainda mais espetaculares, o departamento de arte, especificamente a equipe de efeitos práticos, teve que trabalhar muito. As cenas de recriação da explosão da bomba atômica são algumas das mais belas de se assistir ao longo do filme – e, possivelmente, da filmografia de Christopher Nolan. O trabalho da equipe supervisionada por Scott R. Fisher é fundamental para gerar a humanidade que Oppenheimer necessitava – e que Nolan precisava trazer há anos para suas produções.
Além dos destaques e das possíveis indicações pelo roteiro, montagem e edição, fotografia e efeitos visuais, a edição de som, a trilha sonora e o figurino são outros fortes nomes para indicações aos maiores prêmios de cinema do ano. Falando especificamente do som, ele é, ao lado da fotografia, um dos principais aliados para impulsionar a narrativa. Se Oppenheimer é capaz de alcançar voos ainda mais altos é porque o santíssimo quinteto direção-roteiro-fotografia-som-trilha está operando de forma coesa e eficaz. E o trabalho de composição de Ludwig Göransson (Pantera Negra, de 2018) é impressionante, potente e completa esse pentágono criativo.
Por fim, e não menos importante, Oppenheimer alcança o que alcança por mais duas razões, seu elenco estelar e a direção de Christopher Nolan. Desta vez, diferente da maioria de seus trabalhos, o cineasta pareceu sair de sua função de administrador de uma produção e mergulhou de cabeça como criador, se permitindo sentir e se sensibilizar pela história que estava construindo. Essa dedicação diferenciada para o projeto é claramente sentida desde os primeiros minutos do filme. Nolan terá uma dura concorrência na temporada do Oscar – como por exemplo o forte nome da brilhante Greta Gerwig por Barbie (2023) -, mas, desta vez, o nome do diretor estar entre os indicados é mais do que merecido.
Para encerrar a composição de potência da produção, Oppenheimer conta com um grande elenco. Seja na extensão ou em qualidade, os atores e as atrizes envolvidos nesse processo são um reforço da coesão do projeto e dão razão ao adjetivo. Evidentemente existe um destaque maior para três pessoas: Cillian Murphy, Robert Downey Jr. e Emily Blunt. Os três são as apostas para o Oscar, podendo até, quem sabe, render uma estatueta para o eterno Homem de Ferro, mostrando à Hollywood que ele pode e é mais do que ator de um só personagem.
Regada de dúvidas, delírios e vaidade, a jornada pessoal e ética do físico J. Robert Oppenheimer é, sem sombra de dúvidas, um dos filmes do ano e marcará a temporada de premiações por sua qualidade e poderio técnico. Além de, como pontuado algumas vezes ao longo do texto, ser, quem sabe, uma nova fase para Christopher Nolan. Se Oppenheimer representar o início de uma nova era de produções com mais profundidade e sensibilidade do cineasta britânico, então o futuro do cinema guarda algo inspirador. Caso tenha sido apenas um flerte momentâneo com esse lado mais denso e humano do diretor, pelo menos o mundo terá a oportunidade de vivenciar a experiência cinematográfica que é assistir ao filme.